quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Retrato de José, 31 anos, português suave.

O meu nome é José, tenho 31 anos e quis o acaso que nascesse em Portugal. Filho de carteiro e de costureira, neto de sapateiro e de carpinteiro, formado superiormente em economia. Dir-se-ia que vivo um sonho português, mas não. Se meus pais tiveram o arcaboiço para criar 3 filhos e, inclusive mandar um deles estudar para a capital do império, não me vejo com capacidade para tal façanha. Dir-me-ão que os tempo são outros. Dir-me-ão que pertenço a uma geração egoísta que põe os seus caprichos individuais à frente dos projectos familiares. Será, em parte, verdade. Mas direi também que pertenço a uma geração de entalados.

Se os meus pais colheram os frutos do pulo revolucionário que (para o bem e para o mal) agitou este país e conseguiram, porque para isso lutaram, um mínimo de estabilidade de condições de vida dignas, dizem-me hoje que isso são luxos, luxos que conduziram este pais à ruína. A culpa é deles, a culpa é minha, a culpa é de toda esta gente que julgou ser possível ter uma vidinha um pouco melhor, que era possível estudar e ter um emprego melhor, que era possível ter uma casa à qual chamar sua, ter um carro para passear e férias para relaxar, de preferência no estrangeiro, que é mais fino.

Vivo num país de brandos costumes. Houve por aí uns estroinas que julgavam que podiam ter tudo quando o país é pobre e não lhes pode dar nada, mas agora a coisa vai-se compor e a malta vai começar a baixar a bolinha, é a crise! A geração dos meus pais lutou pela liberdade e por construir um país que queriam mais justo e solidário. Ilusões que se foram paulatinamente perdendo. A geração que me precedeu já se encontrava à rasca e, por não se querer calar nem querer deixar que os enrascassem tranquilamente, apodaram-na de rasca. O ADN contestatário foi-se rarefazendo e a minha geração já pouco piou ( mas ainda piou algo) e hoje por hoje, caminha-se para o estado de ovinidade geral. Há muito para entreter a juventude para que estes se preocupem pouco com o seu futuro. Há muito com que entreter os de meia-idade para que estes se preocupem com o seu presente. E há muito pouco com que entreter os velhos, que só olham para o passado.

Disseram-me que estudasse para doutor, que iria ter uma vida boa. Mais tarde disseram-me que trabalhasse, muito, que iria ter uma vida boa. E eu estudei. E eu trabalho. Agora dizem-me que está mal, que não pode ser. Queres ter saúde: Paga. Queres ter formação: Paga. Não és pobrezinho, então tens que pagar, que o tempo das borlas acabou. Pagas, mas continuas a pagar impostos, que isso é que era bom e, cada vez mais, assim, de uma assentada, 35% do que ganhas, entre o que fica logo retido e o que sai à mingua, cada vez que compras um pacote de chiclets. Que é a crise, que o país está de pantanas, que é preciso o teu sacrifício. Os bancos só pagaram 5% do que ganharam? Não vás por aí, sabes perfeitamente que os bancos são indispensáveis ao bom funcionamento pátrio, tu és apenas mais uma peça da engrenagem despesista. E não te esqueças que andas a ganhar uma fortuna, temos que rever isso, a bem da competitividade, temos que rever isso uns bons 20% para baixo, para já só levas -5%, és um sortudo.

Há que cortar, doa a quem doer. Há que flexibilizar ou as empresas não sobrevivem. As empresas que apresentam prejuízos ano após ano e continuam alegremente a proporcionar carros topo de gama às suas altas patentes, ou as que estão constantemente a falir e a reabrir no mesmo sitio, com os mesmos donos, mas com nomes cada vez mais catitas? Lá estás tu com o teu mau feitio, sabes perfeitamente que se recorrem a buracos na lei é porque são tão ferozmente atacadas que não tem alternativa, vê só que até nem tem a hipótese de estabelecer um salário “justo” de mercado, tem mínimos olímpicos a cumprir, não há-de a crise ser o que é com estes luxos.

Fazem tudo isto porque eu mereço. Eu e todos os outros eus, que se indignam fortemente à mesa do café e por ai se ficam, porque o portuga é um gajo moderno e isso de protestar soa a antigamente. É completamente incompatível com o seu belo cargo de IT specialist, ou procurement officer, ou account manager, ou o raio que os parta, mesmo que o respectivo IT manager, ou chief procurement officer ou o Corporate Sales ganhe 25 vezes mais que eles, quando para os seus homólogos britânicos a proporção seja apenas de 1 para 5. Não é cool. Porreiro pá, é dizer que está mal (mas baixinho, não vá alguém ouvir), que é só gajos a mamar, e é a ciganada pá, e é a pretalhada pá,e é a cambada do rendimento mínimo pá, é os funcionários públicos pá, e é tudo pá, que isto do dividir para reinar, jogando roto contra nu é táctica simples e eficaz e ajuda a que os que mandam neste país vai para 140 anos por lá se mantenham, impávidos e serenos a ver passar a permanente crise.

Há cerca de 94 anos dizia o Almada Negreiros ao Dantas que, se todos fossem como ele (o Almada),"HAVERIA TAES MUNIÇÕES DE MANGUITOS QUE LEVARIAM DOIS SÉCULOS A GASTAR." Assim digo eu à corja que nos governa e, sobretudo, aos economistas do medo que os legitimam.

O meu nome é José, tenho 31 anos e alimento o sonho de o meu país ser algo de minimamente decente. Mas está difícil.

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